quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

LISBON CALLING: Os ícones da América visto pelos ilustradores portugueses


O último texto deste blog em 2015, tem uma particularidade especial. Apesar de ter sido escrito para uma publicação específica (o Catálogo do último AmadoraBD) mantinha-se inédito, em virtude do dito catálogo, que este ano, pela primeira vez, não teria direito a uma  versão impressa, não ter saído ainda sequer em formato digítal, mais de dois meses após o final do Festival.
Por isso, aqui o deixo, tal como foi escrito e fazendo referência apenas às peças que tinham sido entregues na altura em que redigi o texto.
Resta-me desejar um bom ano aos leitores deste blog, onde prometo regressar, logo no início de 2015, com a habitual lista das 10 Melhores BDs que li no ano que findou. 

LISBON CALLING: UM CONVITE DA EMBAIXADA AMERICANA AOS ARTISTAS PORTUGUESES

Entre as dezenas de milhares de visitantes que se deslocaram ao Fórum Luís de Camões durante os dezassete dias que durou o último AmadoraBD, houve um visitante muito especial. Robert Sherman, o Embaixador norte-americano em Portugal que, tendo-se deslocado à Amadora expressamente para visitar a exposição dedicada aos 75 Anos do Batman, acabaria por visitar as restantes exposições que compunham o núcleo central do Festival.
 Tendo colaborado directamente com Lawrence Klein no comissariado das exposições dedicadas aos 75 Anos do Batman e ao Surfista Prateado, outra personagem icónica dos Comics, tive o privilégio de fazer a visita guiada ao Embaixador. Umas das coisas que mais fascinou Robert Sherman na mostra dedicada ao septuagésimo quinto aniversário do Cavaleiro das Trevas, foi a recriação, feita por autores portugueses (e pelos argentinos Juan Cavia e Santiago Villa) de algumas das capas mais importantes da série, cujos originais não foi possível localizar.
 Logo ali, o embaixador sugeriu organizar para a edição seguinte do Festival, uma exposição, com o alto patrocínio da Embaixada, para divulgar o trabalho desses artistas nacionais, muitos deles a trabalhar directamente para o mercado americano. Mostrando que nem todos os políticos são iguais, Robert Sherman cumpriu a sua promessa e a mostra Lisbon Calling, organizada em conjunto pela Embaixada americana e pelo AmadoraBD, aqui está para o provar.
O convite, que era também um desafio, que o embaixador Sherman dirigiu aos desenhadores portugueses, através de Lawrence Klein, que comissariou a exposição a partir dos Estados Unidos, foi para que criassem, em total liberdade, imagens com personagens da cultura Pop americana em cenários portugueses, ou versões portuguesas de heróis americanos da BD ou do cinema. Ou seja, imagens que reflectissem o diálogo entre as duas culturas, recriando, deste lado do Atlântico, os ícones da cultura americana, que os comics e o cinema tornaram globais.
 A este desafio responderam com prontidão mais de uma dezena de artistas, na sua maioria membros integrantes do Lisbon Studio, um colectivo de autores (cuja composição vai variando conforme as entradas e saídas do estúdio) que partilham um atelier num apartamento em Lisboa, perto da Estação de Santa Apolónia e que têm aproveitado as sinergias resultantes desse convívio diário, para participarem activamente em projectos como este, ou editarem uma revista on-line com trabalhos dos seus elementos.
Curiosamente, quem melhor captou a essência do desafio, através de uma composição espectacular, tanto em termos cenográficos, como de detalhe e composição, foi Penim Loureiro, que nem é membro do Lisbon Studio. O arquitecto e autor de Banda Desenhada, que já no ano passado tinha participado na exposição do Surfista Prateado, recriando uma página emblemática de Moebius, pega agora num dos mais famosos monumentos de Lisboa, o Padrão dos Descobrimentos, criado para a Grande Exposição do Mundo Português, de 1940, substituindo os navegadores por personagens dos comics, com o Batman, no lugar do Infante Dom Henrique, secundado por heróis como o Superman, Robin, Mulher-Maravilha, Arqueiro Verde, Demolidor, Rocketeer, Príncipe Valente, Wolverine, Homem de Ferro, Hellboy, Lanterna Verde, Lobo e Deadpool, com o Doutor Destino e o Marv de Sin City a erguerem um padrão, numa réplica perfeita das poses das figuras do lado este do monumento desenhado por Cotinelli Telmo e esculpido por Leopoldo de Almeida.
Como refere Penim Loureiro: “Quando o Lawrence Klein me convidou a fazer uma ilustração da fusão entre a cultura comics dos EUA e a de Portugal, pensei mais na contaminação cultural.
Seleccionei um marco na paisagem, com algum carácter maniqueísta, apelo ao imaginário português tão simplificado como a cultura americana. O Padrão dos Descobrimentos - mais propaganda e posse de "peito tufado" que humanidade - pareceu-me o momento (monumento que subverte a temporalidade) mais indicado. Este entrosamento de imagética exibicionista e fruição facilmente se transformou num grupo de super-heróis norte americanos em clássica posse escultórica. O resultado parece natural, no fim de contas as personagens modeladas por Leopoldo de Almeida, em 1939, não eram de carne e osso; eram mitos. Heróis que nos fazem esquecer da nossa fragilidade.”
Entre os heróis que repetem a sua presença na exposição, temos o Wolverine, o mais popular integrante dos X-Men, que, para além do Padrão dos Descobrimentos, surge a recorrer aos serviços de um amolador de tesouras para afiar as garras, numa ilustração de Joana Afonso e numa versão feminina, como Wolvarina, personagem fruto da ligação de Wolverine com uma varina de Lisboa, nascida da imaginação de Ricardo Cabral.

Outro herói também presente na composição do Padrão dos Descobrimentos, que vai ser aproveitado por outro autor, é o Superman. O Homem de Aço que Osvaldo Medina, coloca a cantar o fado, numa casa de fados. O mesmo sucede com o Batman, que Pedro Ribeiro Ferreira coloca multiplicado de fato e gravata, nas escadarias da Assembleia da República, numa evocação do escândalo das “viagens fantasma”, protagonizado por um deputado que ficou com a alcunha precisamente de “Batman”. Também os Peanuts, de Charles Schulz, estão presentes em duas imagens, através de Charlie Brown. Pepe Del Rei mete-o, e ao Snoopy, numa cena do filme Pátio das Cantigas (o original, com António Silva, naturalmente) a provocar o Evaristo, enquanto Marta Teives o põe agarrado à traseira de um eléctrico (possivelmente o 28) para subir uma das sete colinas de Lisboa.
 Os Vingadores, ou Avengers, que o cinema transformou no mais popular gupo de super-heróis da actualidade, estão numa divertida recriação de João Tércio, através de quatro falsas capas de revistas, que os reúne (como The Agenders) para uma sardinhada, para além de dar um toque bem português aos seus principais membros, transformando o Homem-Aranha em Spider-Mané, um típico “pintas” lisboeta, com bigode, barriga de cerveja e o cigarro ao canto da boca; o Capitão América em Sardine America (o que vem tornar algo estranha a sua presença numa sardinhada, com os restantes Agenders…), enquanto o Homem de Ferro se transforma no Iron Soccer, um cruzamento entre o Cristiano Ronaldo e o Homem de Ferro, da Marvel.
Outro membro dos Vingadores em destaque, é o Poderoso Thor, que Filipe Andrade desenha a sair do bar Viking, local emblemático da “noite” do Cais do Sodré. Mas as referências escolhidas pelos ilustradores portugueses não se ficam pela BD. Também o cinema está presente, seja na homenagem de Dileydi Florez ao filme de The Nightmare Before Christmas, de Tim Burton, cujas personagens são transpostas para Alfama durante os Santos populares, seja no encontro entre Marilyn Monroe e o Zé Povinho, encenado por Pedro Ribeiro Ferreira.
O mesmo podemos dizer em relação às personagens da televisão, pois o “nosso” Zé Gato (o primeiro detective da TV portuguesa) surge ao lado de Jessica Rabitt, numa ilustração de Pep Del Rei, enquanto Marta Teives coloca o Scooby Doo e os seus amigos, a fugirem de um Olharapo. Abordagem diferente é a seguida por Nuno Duarte (que assina “o outro Nuno” para não ser confundido com o argumentista seu homónimo) que recria duas imagens icónicas, introduzindo-lhes elementos tipicamente portugueses. Assim, na capa da revista Mad, que se transforma em Toma!, em vez Alfred E. Neuman - a mascote da revista, cuja cara está sempre em destaque nas capas, substituindo a personalidade, ou personagem, que é alvo de paródia - temos o “nosso” Zé Povinho, a fazer o típico “manguito”. O mesmo sucede na outra imagem que criou para esta exposição, que parte do célebre cartaz do Buffalo Bill’s Wild West Circus, substituindo o mais famoso dos cowboys, por um campino chamado JoaQuim Touro, enquanto que o Circo do Velho Oeste dá lugar ao Grupo de Forcados Amadores.
Finalmente, Pedro Ribeiro Ferreira cria uma daquelas sardinhas ilustradas que se tornaram um dos símbolos das Festas de Lisboa e da criatividade da ilustração nacional, enchendo-a de símbolos imediatamente reconhecíveis da América, do Tio Sam a Hommer Simpson, passando pelo Calvin, ou Rato Mickey. Ingredientes semelhantes, tem a salada criada por Nuno Lourenço Ferreira, onde caretos e galos de Barcelos se misturam com o Hulk, Homem-Aranha e Tartarugas Ninjas, num prato de aspecto apetitoso, temperado com as cores da bandeira portuguesa.
Toda esta diversidade e criatividade poderão ser  vistas durante o período em que decorre o Festival. Mais tarde, as peças viajarão naturalmente para os E.U.A, e em 2016 está também prevista a sua exibição no Festival de Lodz, na Polónia, dando assim outra visibilidade a este saboroso desafio intercontinental a que os artistas portugueses tão bem souberam responder.
Texto escrito originalmente para o Catálogo do 26º Amadora BD, ainda a aguardar publicação digital.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

FELIZ NATAL!


Para o habitual Postal Natalício, este ano escolhi uma ilustração clássica de John Byrne, com alguns dos maiores heróis da DC, editora que, por via da nova colecção da Levoir, tem sido responsável pelo menor ritmo de actualização deste blog...
Uma imagem simples, eficaz e divertida, em que,  mesmo sem ter a visão de Raios X do Superman, é fácil perceber qual foi a prenda do Arqueiro Verde...
Para todos os visitantes deste blog, aqui ficam os meus votos de um Feliz Natal,de preferência com muita BD no sapatinho, até porque este ano não faltaram edições, em quantidade e qualidade para isso.
Boas Festas e um excelente Ano de 2016!

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Batman Noir de Azzarello e Risso


Este ano editorial da Levoir não podia terminar melhor do que com a edição de Batman Noir, uma recolha das histórias do Batman da dupla Azzarello e Risso, apresentadas num preto e branco que realça a fantástica arte de Eduardo Risso. Lançado na Comic Con, onde esgotou durante a tarde de sábado, o livro foi depois distribuído com o jornal Público no domingo, encontrando-se disponível nos quiosques de todo o país. Na Comic Con, foi um prazer reencontrar Eduardo Risso, que entrevistei em 2005, para a revista Comix, e conhecer Brian Azzarello, que se revelou bastante mais divertido do que a sua imagem pública deixa transparecer. 
Como neste caso, para além do texto para o Público, assinei também o editorial do livro, deixo-vos com o editorial, ficando o texto do Público reduzido à imagem imediatamente abaixo.


BATMAN A PRETO E BRANCO, 
OU AS SOMBRAS DE EDUARDO RISSO

Embora seja o mais popular herói do Universo DC, o Batman, antes de ser um super-herói é, acima de tudo, um detective, dimensão bem evidente nas primeiras histórias do herói criado por Bob Kane, com a colaboração de Bill Finger, que se estrearia, não por acaso, nas páginas do nº 27 de uma revista chamada… Detective Comics. Entre os autores que melhor souberam explorar essa dimensão mais detectivesca do Cavaleiro das Trevas estão o escritor Brian Azzarello e o desenhador Eduardo Risso, autores que, embora sejam mais conhecidos pela premiada série 100 Bullets, têm uma ligação ao Batman, tão longa quanto frutífera.
Este volume recolhe precisamente os momentos principais dessa ligação, apresentando-os num glorioso preto e branco, que realça o extraordinário trabalho gráfico do argentino Eduardo Risso. De fora, fica apenas a história de 12 páginas publicada semanalmente em 2009 no projecto Wednesday Comics, pensada para o grande formato de 36 cm x 50,5 cm, dos suplementos dominicais dos jornais clássicos, onde saíram séries como o Little Nemo de Winsor McCay, e que ficaria praticamente ilegível ao ser drasticamente reduzida para o formato tradicional dos comics americanos.
Embora seja essencialmente um autodidacta, Eduardo Risso frequentou um curso de seis meses com o “viejo” Alberto Breccia, o desenhador de Mort Cinder e é precisamente a Breccia e ao seu compatriota José Muñoz (o desenhador de Billie Holiday) que Risso vai beber a sua apurada técnica de preto e branco, que aqui, removidos todos os vestígios da cor, brilha em toda a sua glória.
Uma opção estética que “casa” perfeitamente com o tom geral deste livro, muito próximo do policial hard boilled de que Azzarello é um mestre, pois como refere o espanhol Jordi Bernet, o criador de Torpedo e outro mestre do desenho a preto e branco: “o branco e preto é o ideal para as histórias realistas, sobretudo as do género noir. Gosto de acentuar o dramatismo nas sequências que assim o exijam e, brincando com o preto e branco, consigo obter efeitos muito mais directos do que com a cor. O preto e branco é bem mais simples e eficaz. É mais forte, directo, natural.”

A abrir o livro temos Cicatrizes, o contributo do argumentista de Chicago e do desenhador argentino para a série Batman Black & White. Uma história curta em que Batman enfrenta Victor Zsasz, um assassino psicopata e em que brilham os diálogos de Azzarello e a planificação dinâmica de Risso. Um pequeno aperitivo que abre o apetite do leitor para os dois pratos principais desta experiência “gourmet” centrada na arte de Eduardo Risso e na dimensão noir do universo do Cavaleiro das Trevas que o seu excepcional jogo de sombras vem realçar.

Segue-se Cidade Destroçada, história que, embora pensada inicialmente como uma novela gráfica solta, acabou por ser publicada nos números 600 a 625 da revista mensal Batman, onde teve a ingrata tarefa de suceder a Silêncio, a saga épica de Jeph Loeb e Jim Lee, que trouxe Batman de volta ao primeiro lugar dos tops de vendas. Seguindo o imortal conselho dos Monty Python, Azzarello e Risso optaram por algo completamente diferente do que tinha sido feito na história anterior. Em Cidade Destroçada não há Super-Homem, Oráculo, Robin, Asa Nocturna, Caçadora, Batmóvel, Batcaverna, o mordomo Alfred, Comissário Gordon ou a Mulher Gato, mas apenas Batman, um Batman solitário, investigando um crime numa cidade sombria, desprezada por Deus.
Por isso, em vez de uma história de super-heróis, temos um inquérito policial, na melhor tradição da literatura e do cinema noir, tantos nos cenários, como na narrativa, onde não podia faltar uma voz off desencantada e diálogos rápidos e certeiros como balas, protagonizado por um detective que se veste de morcego e que está demasiado obcecado com o caso que investiga para perceber o que realmente aconteceu. Azzarello e Risso, que já tinham fundido o policial negro com a espionagem e a teoria da conspiração no premiado 100 Bullets, recriam aqui na perfeição o ambiente de film noir, numa história de crime e castigo, em que nem sequer falta uma mulher fatal, tão bela quanto perigosa.
Eduardo Risso faz aqui uma síntese extremamente feliz dos Batmans de Frank Miller, criando um Cavaleiro das Trevas a meio caminho do Batman de O Regresso do Cavaleiro das Trevas e o Batman de David Mazzucchelli, em Ano Um, a que não faltam as sombras de Sin City, que a publicação a preto e branco acentua, sem que o seu traço perca personalidade.
Do mesmo modo, a sua sombria Gotham é uma verdadeira selva de betão, onde os adversários de Batman adquirem uma dimensão mais negra e realista. Veja-se o Croc, que em vez de um crocodilo humano, aparece como um chulo com uma doença de pele que o faz parecer um crocodilo; e, principalmente, o ventríloquo Arnold e o seu sinistro boneco, Mr. Scarface, um dos mais ridículos vilões da galeria de inimigos de Batman, a quem Azzarello dá uma dimensão simultaneamente trágica e inquietante. Do mesmo modo, a conversa entre Batman e o Joker no Asilo Arkham, traz-nos à memória o primeiro encontro da agente do FBI Clarice Sterling com o Dr. Hannibal Lecter no filme O Silêncio dos Inocentes.

A encerrar temos Noite da Vingança, uma história que explora com mestria uma realidade alternativa, na linha das da série Elseworlds, cujas potencialidades inesgotáveis os leitores portugueses já puderam descobrir em Batman: Outros Mundos, de Brian Augustyn e Mike Mignola e Super-Homem: Herança Vermelha, de Mark Millar e Dave Johnson.
No caso desta história, integrada na saga Flashpoint, cujo desfecho vai dar origem ao Universo DC da era Novos 52, foi Bruce Wayne quem morreu às mãos de Joe Chill e é Thomas Wayne quem vai assumir o manto e o capuz do Cavaleiro das Trevas para vingar a morte do filho. O resultado é um Batman bastante mais impiedoso, a quem Risso dá uma corporalidade que o aproxima do Batman de Miller em O Regresso do Cavaleiro das Trevas, que se movimenta numa Gotham em que a polícia foi privatizada, Harvey Dent nunca se transformou no Duas Caras e Thomas Wayne é proprietário do maior casino da cidade, gerido com a ajuda do Pinguim… E se a maioria dos vilões deste universo alternativo acabou por ser morto pelo Batman, o Joker mantém-se bem activo e mais sanguinário do que nunca.
O resultado é uma das melhores histórias do Batman da última década, que um twist, tão espectacular como inesperado, torna verdadeiramente inesquecível e que encerra em beleza esta viagem pelo universo detectivesco do Cavaleiro das Trevas. Um universo a que as sombras de Eduardo Risso dão uma dimensão tão sombria como espectacular.

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

O regresso de Simon Du Fleuve

SIMON DU FLEUVE, 
A REDESCOBERTA DE UM CLÁSSICO PÓS-APOCALÍPTICO

Para os leitores de uma geração, actualmente entre os 40 e os 50 anos, que cresceu com a edição portuguesa da revista Tintin, há nomes que trazem recordações imediatas. Um desses nomes é o de Simon Du Fleuve, o herói da série homónima de Claude Auclair, que foi uma das primeiras a explorar a aventura num cenário pós-apocalíptico, abrindo caminho a outras abordagens posteriores ao género, como Le Transperceneige, de Lob e Rochette (já analisado numa anterior edição da revista Bang!), Armalite 15, de Michel Crespin, ou Jeremiah, de Hermann, para nos limitarmos a exemplos da BD franco-belga. Uma série de culto, que volta finalmente a estar disponível graças à edição integral da Lombard, cujo primeiro volume já terá fechado às lojas FNAC, na altura em que este número da Bang! for publicado.
Nascido em 1943, Claude Auclair tirou o curso de Belas Artes, em Nantes, tendo trabalhado como cenógrafo e decorador de teatro durante grande parte da década de 60. A profissão leva-o a mudar-se para Paris onde fica até 1967, quando, já cansado do trabalho no teatro, decide deixar tudo e viajar pelo Mediterrâneo durante um ano. No regresso a Paris, que coincide com o Maio de 68, decide mudar de vida e dedicar-se primeiro à ilustração e depois à BD.
Os seus primeiros trabalhos de ilustração são para as revistas de ficção científica das Editions OPTA, enquanto que a sua estreia na BD se faz no fanzine Phénix, com uma história curta. A redescoberta da BD, de que Auclair nem era leitor assíduo, dá-se graças a Robert Roquemartine, o primeiro proprietário da Livraria Futuropolis – Livraria que, anos mais tarde, nas mãos de Etienne Robial e Florence Cestac vai dar origem à histórica editora como o mesmo nome - que lhe dá a descobrir os clássicos, como Alex Raymond, Harold Foster, ou Jijé, e o apresenta aos autores que frequentavam a sua livraria.
Um desses autores era precisamente Jean (Moebius) Giraud. Giraud, que já conhecia o trabalho de Auclair das capas das Editions OPTA, além de o ajudar na sua primeira história, Aprés, publicada na revista Underground Comics, convida-o a mostrar o seu trabalho a Goscinny e a colaborar na revista Pilote. A estreia de Auclair na Pilote dá-se em 1970, com Jason Muller, uma série pós-apocalíptica, que, como veremos, está na génese de Simon Du Fleuve. As duas primeiras histórias de Jason Muller foram escritas por Giraud e por Pierre Christin (o argumentista de Valerian e dos melhores álbuns de Bilal, que aqui assina com o pseudónimo Linus), enquanto Auclair escreveu as duas seguintes, mas a série ficar-se-ia por estas quatro histórias curtas, pois Goscinny rejeitou, sem lhe dar quaisquer justificações, as propostas de argumentos apresentados por Auclair para novas aventuras de Jason Muller.
Mas Auclair não queria deixar morrer o universo de Jason Muller e, dois anos depois, decide propor essas mesmas histórias, ligeiramente reformuladas, a Greg, o argumentista de Comanche, Bernard Prince e Bruno Brasil e editor da revista Tintin. Embora A Saga do Grizzly, a primeira história que publicou no Tintin belga não tenha tido grande sucesso e a colaboração entre Greg e Auclair na história Os Náufragos de Arroyoka, em 1971, não tenha deixado grandes saudades a nenhum dos autores, Greg soube reconhecer o potencial do universo criado por Auclair e, em 1973, abriu-lhe novamente as portas da revista Tintin, onde os leitores viram nascer as Crónicas do Tempo Futuro e o seu protagonista, Simon Du Fleuve.
No seu poema The Hollow Men, T. S. Elliot diz que o mundo vai terminar, não numa explosão, mas num suspiro, e é essa a perspectiva seguida por Auclair na criação do universo pós-apocalíptico onde decorrem as aventuras de Simon Du Fleuve. Aqui não há uma guerra nuclear, sem sequer uma alteração climatérica extrema, como em Le Transperceneige, mas o lento agudizar da crise provocada pela Guerra Fria e pelo choque petrolífero, que leva a um clima de guerra civil generalizado e ao colapso da sociedade de consumo, seguido por uma série de epidemias que reduzem drasticamente a população mundial.
A maioria dos sobreviventes abandona as cidades e regressa aos campos, vivendo em comunidades, trabalhando a terra, ou pastoreando animais. O dinheiro perde o seu significado e dá lugar à troca directa. Os carros, que a falta de gasolina tornou inúteis, dão lugar aos cavalos. Os vestígios da civilização industrial, como as torres de electricidade, as estradas, linhas e estações de comboio, continuam a marcar a paisagem, mas não passam de monumentos grotescos a um mundo que já não existe. A excepção são as cidades-fortaleza, onde se refugiam os Senhores, com os seus exércitos que, esses sim, têm ainda veículos em estado de funcionar e gasolina e para os alimentar, para além de um vasto arsenal que lhes permite atacar as tribos nómadas e transformar os sobreviventes em escravos, que permitem manter a funcionar as fábricas que alimentam esse esforço de guerra.
Nascido numa dessas cidades, Simon é filho de um investigador que inventou uma pistola laser, e que na sequência do assassinato do seu pai, destrói os planos da arma e foge com o único protótipo existente, de modo a impedir que esta tecnologia mortífera caia nas mãos dos senhores das Cidades.
O primeiro ciclo da série, que compreende seis álbuns (La Balade de Cheveu Rouge, O Clã dos Centauros, Os Escravos, Maílis, Os Peregrinos e Cidade N.W, nº 3) relata a fuga de Simon e o seu regresso à cidade onde nasceu, para fazer justiça, contando com a ajuda de Jason Muller, personagem que reaparece na obra de Auclair, mas envelhecido, deformado e enlouquecido por uma vida de combates. Esses álbuns traçam um percurso movimentado e violento, em que Simon é obrigado a lutar pelos seus ideais e encontra o amor por duas vezes, sempre com resultados trágicos, até descobrir finalmente a sua companheira para a vida em Emeline.
As aventuras de Simon Du Fleuve são histórias duras e violentas, marcadas por um profundo sentido de justiça e de humanidade, reflexões em tom ecológico, sobre as consequências do progresso descontrolado, servidas por um traço realista de grande dinamismo, que rapidamente conquistou os leitores. Mas, como sempre aconteceu com Auclair, esse sucesso não foi conquistado com facilidade. O autor teve que enfrentar obstáculos complicados, logo no primeiro álbum da série, assumidamente inspirado no livro Le Chant du Monde, de Jean Giono, que devido à pressão da Gallimard, a editora de Giono, que viu aqui um caso de plágio, apenas saiu na revista Tintin, sendo interdita a sua publicação em álbum.
Mas a partir daí, primeiro no Tintin belga e depois em álbum, a série começa a conquistar o público, a crítica e até os autores de BD franceses. O ponto de viragem é o álbum Maílis. Como refere Auclair: “Em Paris, os profissionais de Banda Desenhada só me começaram a falar de Simon, a partir de Maílis, quando já não era possível ignorar o sucesso conseguido pela série. Antes disso, sentia que toda a gente fazia de conta que eu não existia. Fui reconhecido bastante mais cedo na Bélgica, onde me atribuíram vários prémios. Os países nórdicos e Portugal também reagiram com muita força à série.”
Em Portugal, esse sucesso foi evidente com a publicação, a partir de 1975, primeiro na revista Tintin e depois em álbum, do primeiro ciclo de Simon Du Fleuve, pela Bertrand. O clima cultural e ideológico que se vivia em Portugal a seguir ao 25 de Abril, ajudou a esse sucesso, mas a qualidade do trabalho de Auclair foi decisiva.
Ainda assim, Simon Du Fleuve não é uma série perfeita, com o tom panfletário e o carácter demasiado expositivo de algumas das histórias, a fazerem-se notar. O momento em que a série mais se aproxima da perfeição, é precisamente o álbum Maílis, em que Simon entra na vida de duas mulheres que vivem desterradas numa cabana à beira de um pântano. Um pântano que, revela Auclair é muito inspirado no pântano bretão, onde o autor passou a infância com a avó. Como refere: “ a cabana que lhes desenhei, é parecida com a casa onde vivia a minha avó”.
Para além do triângulo amoroso que se vai formar com a chegada de Simon e que terá consequências trágicas para todos, há um elemento fantástico que marca a história. Uma antiga central nuclear, habitada por mutantes criados pela radiação, que repetem, como num cerimonial religioso, a rotina de funcionamento de uma central nuclear.
Depois de Cidade N-W Nº 3, que encerra o primeiro ciclo das aventuras de Simon Du Fleuve, Auclair troca o espartilho dos álbuns com heróis e as histórias de 48 páginas, pela liberdade total da revista (A Suivre), onde está presente desde o primeiro número, trabalhando, sempre em colaboração com argumentistas, em sagas a preto e branco, de mais de cem páginas, como Bran Ruz, ou Le Sang du Flamboyant.
È através da revista (A Suivre) que Auclair vai conhecer Alain Riondet, um argumentista e ilustrador, com quem vai ressuscitar Simon Du Fleuve, num segundo ciclo de quatro álbuns e publicar uma novela gráfica a preto e branco, Celui-Lá. Constituído pelos álbuns L’Eveilleur, Les Chemins de L’Ogam e pelos dois volumes de Naufrage, este segundo ciclo, em que Simon Du Fleuve está menos presente e reduzido a um papel mais passivo, fica marcado por um ambiente mais místico e por um simbolismo muito pouco subtil, que fazem com que estes álbuns tenham envelhecido bem pior do que os primeiros.
Já em termos gráficos, estamos perante o melhor de Auclair. O desenhador, sabendo-se doente, com um cancro do estômago que o haveria de matar em 20 de Janeiro de 1990, com medo de não ter tempo de desenhar todas as histórias que tinha em mãos, trabalha a um ritmo alucinante para os padrões da BD franco-belga. Em apenas dois anos, publica os quatro volumes do segundo ciclo de Simon Du Fleuve e o primeiro volume, de quase cem páginas de Celui Lá. Só não tem tempo de terminar de desenhar o segundo volume de Celui Lá, que será terminado por Jean-Claude Mézieres e Jacques Tardi, que desenham as pranchas finais, de modo a que o livro possa ser lançado no Festival de Angoulême de 1991, numa última homenagem a Auclair, desaparecido exactamente um ano antes.
Auclair era um apaixonado pelo mar e pretendia passar algum tempo a navegar, tendo mesmo mandado construir um veleiro para isso, mas a doença que o levou, não lhe deu tempo de se fazer ao mar. Fê-lo Simon por ele, pois para além do mar estar muito mais presente no segundo ciclo, a última imagem do herói que o leitor vê, é precisamente Simon e Eveline a afastarem-se de barco, em direcção a outras aventuras. Aventuras que Auclair já não teve tempo de contar.
Publicado originalmente no nº 19 da revista Bang!, de Outubro de 2015

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

BILLIE HOLIDAY - A vida da Diva do Jazz numa Novela gráfica de Muñoz e Sampayo


Grande fã de Muñoz e Sampayo, foi com prazer que soube que a Levoir ia editar em Portugal a biografia de Bille Holliday que eles fizeram. Para além de traduzir o livro e fazer as biografias dos autores, tive também oportunidade de escrever este texto para o Público, que aqui apresento na sua versão integral. As citações de José Muñoz foram extraídas de uma entrevista que lhe fiz em 2001 e que foi publicada anos depois na revista Quadrado

VIDA DE BILLIE HOLIDAY EVOCADA 
EM NOVELA GRÁFICA DE MUÑOZ E SAMPAYO

No ano em que se comemora o centenário do seu nascimento, o Público e a Levoir homenageiam Billie Holiday, a mítica diva do jazz, publicando pela primeira vez em Portugal a novela gráfica que Muñoz e Sampayo lhe dedicaram.
Vencedor do Grande Prémio de Angoulême em 2007, José Muñoz nasceu em 1942, em Buenos Aires e estudou na Escola Pan-Americana de Artes, onde foi aluno de Alberto Breccia e conheceu Hugo Pratt, os autores que mais influenciaram o seu estilo. Aos 18 anos, começou a trabalhar como assistente de Solano Lopez, em El Eternauta (a obra-prima da BD argentina, escrita por Oesterheld) e pouco depois substituiu Hugo Pratt como desenhador de outra série mítica criada por Oesterheld, Ernie Pike. Carlos Sampayo nasceu em 1943, também em Buenos Aires. Definindo-se como “um boxeur amador até um dia em que ficou K.O. por se ter distraído a olhar para um cartaz publicitário”, Sampayo trabalhou inicialmente em publicidade, até se dedicar a tempo inteiro à BD.
Nomes maiores da BD argentina, os dois autores construíram a sua carreira conjunta na Europa, onde se exilaram em inícios da década de 70, para fugir à ditadura militar argentina, e onde ainda residem.
Curiosamente, essa colaboração nasceu num aeroporto e amadureceu noutro. Tudo começou em 1974, no aeroporto de Londres, quando Oscar Zarate (desenhador argentino que trabalhou com Alan Moore) aconselhou Muñoz, de partida para Espanha, a contactar com Sampayo, um escritor argentino então a viver perto de Barcelona, que Muñoz tinha conhecido três anos antes, curiosamente noutro aeroporto, aquando da partida de Zarate para Inglaterra.
Da parceria entre esses dois argentinos exilados, nasceu em 1975 um herói, Alack Sinner, o detective americano que valeria aos seus criadores dois Prémios de Angoulême, em 1978 e 1983. Como refere Muñoz: "A nossa formação cultural, feita na Argentina, durante os anos 50 e 60, foi extremamente rica e variada, pois tínhamos acesso à maioria do material europeu e norte-americano... Tivemos assim a sorte de poder apreciar o que de bom vinha dos Estados Unidos. E uma dessas coisas boas era o policial "negro" americano, até porque a situação política na Argentina tinha infelizmente tudo a ver com a realidade do policial negro, era mesmo uma autêntica novela de terror!
Foi desse caldo de cultivo que nasceu Alack  Sinner, cujo nome significa “ai de mim, pecador”. A reflexão destas nossas confusões internas, o desejo desesperado de manter uma vida digna, fora do nosso país, um país que matava os nossos irmãos, tudo isso foi transformado e sublimado em Alack Sinner.
Uma série que é composta de ciclos distintos. Numa primeira fase, seguimos as regras do policial negro de forma rigorosa, mas à medida que o trabalho nos educou e fomos crescendo como autores, Alack Sinner tornou-se a síntese principal da nossa dupla criativa. Dia após dia. “
Para além das histórias de Alack Sinner, personagem que atravessa a obra da dupla, estando presente também em Billie Holiday, a música é um elemento fundamental na obra de Muñoz e Sampayo que, além desta biografia de Billie Holiday, dedicaram mais recentemente um livro à vida de Carlos Gardel, nome maior do tango.
A importância da música na obra da dupla é algo perfeitamente assumido, como se percebe pelas palavras de Muñoz: “Alack Sinner é uma metáfora musical do tango e do jazz. Fizemos também uma história sobre Charlie Mingus, um músico que eu conhecia mal, pois fiquei-me mais pelo jazz até aos anos 50, mas que Carlos, que é o grande especialista de jazz, adorava. Até nesse aspecto, em termos musicais, nos completamos... Quanto a Billie Holliday, o caso foi diferente. Ambos temos um profundo amor e admiração pelo trabalho desta mulher, e quanto Lucas Taletti, um italiano que vive em Paris e era nosso agente na altura, nos propôs fazermos uma BD sobre Billie, entrámos quase em órbita!
Mas Billie Holliday também é uma emanação de Alack Sinner. Tudo isto são como emanações, mas que não são apenas bairros periféricos de Alack Sinner, mas uma consequência da seriedade tragicómica da nossa aposta de fazer algo sério através de uma linguagem, a BD, que nem sempre tem sido usada com esse objectivo.”
Prova que a arte não conhece fronteiras, este trabalho de dois argentinos, sobre uma cantora negra americana, publicado originalmente em Itália, em 1990, na revista Corto Maltese e em livro em França, chega finalmente a Portugal, na versão especial comemorativa do centenário do nascimento da cantora.
Que melhor testemunho poderia haver da dimensão global de uma obra, em que Nova Iorque é uma Buenos Aires traduzida e Billie Holiday e Carlos Gardel ganham vida no desenho a preto e branco de Muñoz? Mais uma vez, Muñoz tem a resposta: “neste mundo a meio caminho entre o sonho e a vigília que são os nossos trabalhos, tudo se harmoniza. A música de Billie Holliday podia perfeitamente pertencer a um ambiente de tango. Entre as grandes cantoras de tango e as cantoras de jazz, como Billie Holliday há uma familiaridade. A mesma profundidade de um coração desgarrado, mas vivo, que canta.”
Versão integral do texto publicado no jornal Público de 30/10/2015 

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Poderosos Heróis Marvel 15: A Despedida da colecção

Com este volume chega ao fim mais uma colecção do Público e da Levoir e, como de costume, deixo-vos com o texto que escrevi para o jornal Público. Fica a faltar apenas o texto sobre o vol 14, dedicado ao Hulk, mas apaguei o ficheiro acidentalmente e, de qualquer maneira, como se tratou do texto mais curto que escrevi para esta colecção, a perda também não é grande...

KURT BUSIEK REGRESSA A MARVELS, 
NO VOLUME FINAL DA COLECÇÃO PODEROSOS HERÓIS MARVEL

Poderosos Heróis Marvel, Vol. 15
Marvels: Através da Objectiva
Argumento – Kurt Busiek
Desenho – Jay Anacleto
Quinta, 29 de Outubro + 8,90 €
Chega ao fim na próxima quinta-feira mais uma colecção que o Público e a Levoir dedicaram à Casa das Ideias e, com a publicação de Marvels: Através da Objectiva, pode dizer-se que fecha com chave de ouro.
Continuação de Marvels, um clássico incontornável, já publicado em Portugal na colecção Universo Marvel, que conquistou três Prémios Eisner e afirmou o desenhador Alex Ross como um dos maiores nomes da BD americana, Através da Objectiva prossegue com a história do Universo Marvel vista na perspectiva de um homem comum, o fotógrafo Phil Sheldon.
Uma continuação tão lógica como natural, pois face ao sucesso do primeiro Marvels, era inevitável que a editora pensasse numa sequela, e que Phil Sheldon, o herói involuntário do livro, que vai assistir ao nascimento do Universo Marvel e das suas primeiras três décadas de existência, acabasse por regressar às páginas dos comics. Logo em 1995 foi lançado Ruins, uma visão alternativa de Marvels, escrita por Warren Ellis, com arte de Therese e Cliff Nielsen, em que Phil Sheldon é um jornalista que investiga os múltiplos eventos e acidentes que criaram os super-heróis da Marvel, mas que neste universo resultaram em deformações e mortes, contrapondo a sensação de deslumbramento de Marvels a um negrume quase total. Mas anos mais tarde, seria o próprio Kurt Busiek a regressar ao universo de Marvels, na sequência de um convite do editor Tom Brevoort que não quis deixar passar em claro o décimo aniversário do livro que se tinha tornado um bestseller e uma obra de culto.
Naturalmente, Busiek não quis perder a oportunidade de voltar a escrever a vida de Phil Sheldon, personagem que lhe é bem caro. Como refere o escritor: “Gosto imenso do Phil como personagem que permite mostrar um ponto de vista; ele é completamente normal, tão pouco super-heróico que se torna na lente perfeita através da qual podemos observar o Universo Marvel - um velhote judeu, que conhece os super-heróis desde as suas origens, e que, por causa disso, me lembra um pouco o Stan Lee ou o Julius Schwartz. Ele é uma ligação aos inícios, mas no meio daqueles acontecimentos todos, a história dele continua a ser profundamente humana.”
Nascia assim Marvels: Através da Objectiva, em que o passado glorioso da Silver Age dá lugar a um presente bem mais sombrio, em que personagens amorais e violentas como o Justiceiro, Wolverine, ou o Motoqueiro Fantasma tornam cada vez mais ténue a fronteira entre os heróis e os vilões.
A ingrata tarefa de substituir Alex Ross, ficou (e bem) nas mãos de Jay Anacleto, um talentoso artista de origem filipina, que os leitores portugueses conhecem da série Aria, uma série de fantasia escrita por Brian Holguin que obteve um êxito imenso e colocou o nome de Anacleto no mapa. Contando com as cores sombrias de Brian Haberlin, Anacleto cria um registo gráfico que, não sendo tão espectacular como o de Alex Ross, se revela perfeitamente adequado para uma história sombria sobre uma era sombria.
Publicado originalmente no jornal Público de 23/10/2015

terça-feira, 27 de outubro de 2015

Depois de Billie Holiday, Bernard Prince: A BD no Público todas as semanas

Embora só nesta quinta-feira termine a colecção Poderosos Heróis Marvel, com a publicação de Marvels: Por Trás da Objectiva, de Kurt Busiek e Jay Anacleto, já são conhecidas as próximas edições de BD a sair com o jornal Público, que até ao fim do ano,terá  Banda Desenhada todas as semanas.
No dia 5 de Novembro será lançado Billie Holiday, a biografia em BD da cantora de jazz Billie Holiday, cujo centenário de nascimento se comemora em 2015, assinada por dois mestres da BD argentina, José Muñoz e Carlos Sampayo, os criadores de Alack Sinner.
Na quarta-feira, dia 11 de Novembro, arranca mais uma colecção em parceria com a Asa, dedicada ao um dos grandes clássicos da BD franco-belga de aventuras: Bernard Prince, de Hermann e Greg. A série, que revelou o desenhador Hermann, vai ter direito a uma selecção de 12 títulos, que cobrem a maioria das histórias desenhadas por Hermann e ainda tem espaço para A Cilada dos Cem Mil Dardos, desenhada por Dany, o artista que teve a espinhosa missão de suceder a Hermann..

De fora, ara além de A Fortaleza das Brumas e Objectivo Cormoran, já publicados numa anterior colecção Público/Asa ficam Ameaça sobre o Rio, o álbum que assinala o regresso de Hermann a Bernard Prince, mais de trinta anos depois, Bernard Prince d'Hier e d'Aujourd'hui, uma recolha de histórias curtas desenhadas por Hermann, Orage sur le Cormoran, o segundo álbum desenhado por Dany e  La Dinamitera e Poison Vert, os dois álbuns finais desenhada por E. Aidans
Dois grandes lançamentos, que terão o merecido destaque neste blog.

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Poderosos Heróis Marvel 13 - Gavião arqueiro. Quem pelo Arco Vive

A ESTREIA DO GAVIÃO ARQUEIRO, 
NA PREMIADA VERSÃO DE FRACTION E AJA

Poderosos Heróis Marvel, Vol. 13
Gavião arqueiro: Quem pelo Arco Vive
Argumento – Matt Fraction
Desenho – David Aja e Javier Pulido
Quinta, 15 de Outubro + 8,90 €

Depois da Viúva Negra, no vol. 4 e do Homem-Formiga, no vol. 8, o último poderoso herói da Marvel a ter honras de estreia nesta colecção, é o Gavião Arqueiro, protagonista do volume que chega às bancas na próxima quinta-feira.
Criado por Stan Lee e Don Heck em 1964, no nº 57 da revista Tales of Suspense, Clint Barton, o Gavião Arqueiro começou por ser um vilão, mas rapidamente se redimiu e tornou-se um dos mais antigos membros dos Vingadores, compensando a sua ausência de superpoderes, com uma pontaria infalível com arco e flecha. Personagem relativamente secundário e algo derivativo, vista por alguns (e com uma certa razão) como uma cópia não muito inspirada do Arqueiro Verde da DC, o Gavião Arqueiro era um personagem quase desconhecido do grande público, que ganhou muito com a sua presença nos filmes dos Vingadores. Um filme de grande sucesso que, tal como aconteceu com a Viúva Negra, contribuiu para aumentar exponencialmente a sua popularidade junto dos leitores da Marvel, para além de lhe garantir um novo uniforme, bastante mais conseguido do que o original, criado por Don Heck…
Mas, no que ao Gavião Arqueiro diz respeito, o maior mérito do filme de Joss Whedon, foi mesmo ter possibilitado o aparecimento da série a solo do arqueiro da Marvel, cujos primeiros seis números poderão ler no volume 13 desta colecção. Escrita por Matt Fraction, autor que assinou também o argumento do volume anterior, dedicado ao Poderoso Thor, e desenhada principalmente pelo espanhol David Aja - que cede o lugar ao também espanhol Javier Pulido durante dois números, para uma história de espionagem na melhor tradição dos filmes de James Bond… ou das aventuras de Nick Fury, enquanto agente da S.H.I.E.L.D. - a série centra-se bem mais no homem, Clint Barton, a braços com os seus problemas como senhorio de um prédio pretendido pela máfia russa, do que no herói, o Gavião Arqueiro, que praticamente não usa o uniforme.
Um aspecto que evoca o clássico Demolidor: Renascido, de Frank Miller e David Mazzucchelli, já publicado numa anterior colecção da Marvel, do mesmo modo que o trabalho gráfico de Aja neste livro, se aproxima do estilo de Mazzucchelli, em Renascido. Embora estejamos perante duas histórias extraordinariamente bem contadas, criadas por duas equipas artísticas que dominam como poucos os mecanismos narrativos da Banda Desenhada, a grande diferença está no tom da narrativa. Uma diferença dada pela leveza e pelo humor dos diálogos de Fraction, que contrasta com o dramatismo e o pathos da escrita de Frank Miller.
Bem desenhado, melhor escrito e narrado de forma tão eficaz como inovadora, o Gavião Arqueiro de Fraction é um dos mais interessantes e premiados títulos da Marvel dos últimos anos e, naturalmente, um livro absolutamente a não perder.
Publicado originalmente no jornal Público de 09/10/2015

domingo, 11 de outubro de 2015

Frank Miller regressa a Batman com Dark Knight III: The Master Race


Quando se aproxima o 30º aniversário da publicação de The Dark Knight Returns, a seminal obra de Frank Miller, recentemente reeditada em Portugal pela Levoir, nos Estados Unidos, a DC Comics prepara-se para lançar no final do ano, Dark Knight III: The Master Race, uma continuação que pretende ser o capítulo final da trilogia iniciada com The Dark Knight Returns em 1986, e prosseguida com o controverso The Dark Knight Strykes Again, de 2001.
Depois da publicação na Net de uma dezena, entre as mais de 30 capas alternativas, assinadas pelos maiores nomes dos comics, específicas para diferentes livrarias, incluindo a capa feita por Frank Miller que abre este post, a New York Comic Con, que decorreu este fim-de-semana, serviu para a DC divulgar mais informação sobre este projecto, incluindo algumas páginas do primeiro volume desta mini-série de 8 números, que chega às livrarias especializadas dos EUA em finais de Novembro, em duas edições. Uma em formato comic, com um mini-comic de 16 páginas em formato mais pequeno, agrafado no interior e, duas semanas depois, uma edição para coleccionador, em formato maior, com ambas as histórias no mesmo tamanho e lombadas, que juntas formarão um desenho.
Escrito por Frank Miller e Brian Azzarello, DKIII assinala o regresso de Miller ao activo depois de alguns anos afastado devido a doença. Um cancro cujos efeitos eram bem visíveis aquando das últimas aparições públicas do autor, em 2013, para promover a estreia do segundo filme da série Sin City. 
Aparentemente, Miller conseguiu superar a doença e, embora não desenhe o capítulo final da trilogia, desenha  uma capa alternativa para cada número e as páginas interiores  do primeiro mini-comic de 16 páginas, dedicado ao Atom, que vai sair no nº 1, como encarte e cuja capa, com um Super-Homem "bem dotado" e desenhado num estilo próximo do usado no segundo Dark Knight, causou controvérsia na Net.
A tarefa de desenhar a série principal, ficou a cabo de Andy Kubert, que desenhou algumas histórias memoráveis do Batman, escritas por Grant Morrison e Neil Gaiman,publicadas em Portugal pela Levoir, e de Klaus Janson, que volta a encarregar-se da arte-final, como tinha feito no primeiro Dark Knight e passa também a tinta os desenhos a lápis de Miller na história do Atom, reatando assim uma das parcerias mais famosas dos comics americanos, primeiro na série Daredevil, e depois no TDKR original.
Com publicação mensal, a série vai sofrer um interregno de um mês ao fim de 3 números, para dar lugar em Fevereiro, mês em que se comemoram os trinta anos da série original, a uma prequela desenhada por John Romita Jr., que volta a trabalhar com Miller, depois do excelente Daredevil: Man Without Fear, que foi uma das influências maiores da fabulosa série do Demolidor da Netflix.
Resta esperar por Novembro, para perceber se o regresso de Miller ao Batman consegue estar à altura das expectativas, sobretudo depois da desilusão que foi Holy Terror, o último trabalho em BD que Miller publicou. 
A famosa frase de Nietzche que diz que "o que não nos mata, torna-nos mais forte" sempre funcionou quase como um mantra na forma como Miller tratava os seus personagens. Esperemos que o próprio criador consiga também fazer jus a essa máxima e surja, neste seu regresso à BD, revigorado e ao seu melhor nível.
Precisamente por o motivo deste post ser o regresso de Frank Miller à BD, optei por ilustrá-lo só com desenhos de Miller (duas capas e uma página da história do Atom, com arte-final de Klaus Janson), mas no interessante video da entrevista com Jim Lee e Dan Didio, que está logo abaixo, poderão ver várias capas alternativas e os desenhos a lápis de Andy Kubert para algumas das páginas do primeiro volume.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Poderosos Heróis Marvel 12 - Thor: O Coração do Mundo

THOR E O SURFISTA PRATEADO 
LUTAM PELA SEMENTE DA ÁRVORE DO MUNDO

Poderosos Heróis Marvel, Vol. 12Thor: O Coração do Mundo
Argumento – Matt Fraction
Desenho – Olivier Coipel
Quinta, 08 de Outubro + 8,90 €

A estreia do poderoso Thor nesta colecção, faz-se com uma história em que o Deus do Trovão tem que enfrentar um adversário bem conhecido dos leitores, que também é um poderoso herói da Marvel: o Surfista Prateado. Um confronto que tem por objectivo impedir que Galactus, o Devorador de Mundos, de quem o Surfista é o arauto, destrua Asgard, e por acréscimo, a América, pois após a destruição da ponte do Arco-íris, a pátria dos Deuses Vikings continua a flutuar sobre o Estado de Oklahoma.
Sendo dois dos mais ilustres representantes da dimensão cósmica do universo Marvel, que Jack Kirby tão bem soube cultivar, os confrontos entre Thor e o Surfista Prateado são uma constante ao longo da história da Casa das Ideias, com o arauto de Galactus a enfrentar o Deus do Trovão logo no quarto número da revista do Surfista, numa história de Stan Lee e John Buscema, publicada em 1968.
Na origem deste novo confronto está a Yggdrasil, a Árvore do Mundo, que serve de elo de ligação entre Asgard e os restantes oito Reinos, árvore que foi rasgada ao meio, e verte o líquido do espaço-tempo, pondo em risco o equilíbrio do universo. É bem no fundo das raízes dessa árvore, no Coração do Mundo, que Thor, Sif e Loki, vão recuperar a semente da Árvore do Mundo. Um objecto de tal forma poderoso que pode assegurar a imortalidade a Odin, ou saciar a eterna fome de energia de Galactus. Mas não as duas coisas em simultâneo. O que leva a um combate sem tréguas entre as duas divindades, tendo os aterrorizados habitantes de Broxton, Oklahoma, como testemunha.
Matt Fraction, o autor desta história, é um dos mais populares e premiados argumentistas do momento, graças ao seu trabalho nas séries Hawkeye (o Gavião Arqueiro, que protagoniza o próximo volume desta colecção, precisamente com a aclamada fase de Fraction e Aja) e Sex Criminals, Neste caso, Fraction revela-se um digno sucessor de J. M Straczinsky, o anterior argumentista de Thor, construindo uma história épica, repleta de momentos de aventura à escala cósmica e pequenos, mas certeiros, apontamentos de humor, dados pela ligação entre o volumoso Volstagg e os habitantes de Broxton.
Publicado originalmente no jornal Público de 02/10/2015

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Poderosos Heróis Marvel 11 - Demolidor: Partes de um Todo


E aqui fica o último editorial que escrevi para esta colecção. Uma das minhas histórias favoritas do Demolidor, que tive também o prazer de traduzir. O texto do Público, surge, como habitual nos volumes em que escrevo o editorial, apenas em imagem.

O DEMÓNIO E AS MULHERES


Estamos em 1998. A Marvel, que tinha acabado de declarar falência, decide encomendar à companhia independente Event Comics, de Joe Quesada e Jimmy Palmiotti, a produção das histórias de quatro personagens da Casa das Ideias, cujas revistas tinham sido canceladas, ou estavam em franca decadência: Demolidor, Justiceiro, Pantera Negra e Inumanos. Nascia assim a linha Marvel Knights, que relançou essas e outras personagens, em histórias como princípio, meio e fim, assinadas por autores de prestígio, alguns deles vindos dos comics independentes, ou de outros media, como Kevin Smith, recrutados por Quesada e Palmiottti para insuflar uma nova vida na editora. O sucesso da linha Marvel Knights foi tal que Joe Quesada foi nomeado editor-chefe da Marvel dois anos depois, em 2000 e o título que mais contribuiu para esse rápido sucesso, foi precisamente a série Daredevil.
Não por acaso, foi neste título que os dois editores se envolveram mais directamente, assegurando logo a arte do primeiro arco de histórias desta segunda série do Demolidor, cujos primeiros oito números foram escritos pelo cineasta Kevin Smith, que assim se estreou como argumentista de BD, com a saga Guardian Devil. Depois do sucesso de Guardian Devil, que trouxe a revista do Demolidor de volta à lista dos 10 títulos mais vendidos, onde não estava desde os tempos de Frank Miller, e com Smith de volta aos filmes, era preciso encontrar alguém capaz de o substituir.
Entre os vários autores que Quesada e Palmiotti contactaram inicialmente para trabalhar na linha Marvel Knights, estava David Mack. Nascido em 1972, em Cincinatti, no Ohio, Mack é o autor da série Kabuki, publicada inicialmente pela editora Caliber. Uma série que escreve e desenha, num estilo único, em que a linha se mistura com a pintura e a colagem, ficando bem patente a sua formação como designer, na forma como trata a página como um todo e como o texto e o desenho dialogam e se completam.
Precisamente por estar muito ocupado com a série Kabuki, que nessa altura ia ser relançada na Image, Mack não pôde aceitar o convite de Quesada para assumir um dos títulos à sua escolha da linha Marvel Knights, mas já não foi capaz de recusar um segundo convite, desta vez para ilustrar algumas capas e escrever uma história do Demolidor.
É essa história que poderão ler nas páginas seguintes e que assinala a estreia de Mack na Marvel. Uma estreia que lhe permitiu realizar um sonho de criança, pois o autor descobriu o Demolidor de Frank Miller quando tinha nove anos e foram essas histórias que o levaram a pensar pela primeira vez em contar, também ele, histórias através das imagens. E a influência do trabalho de Miller na escrita de Mack, é algo que o próprio é o primeiro a assumir, dizendo:
“As únicas histórias do Demolidor que li, foram as histórias do Frank Miller. Adorei essas histórias, quando era miúdo. Por isso, quando me convidaram para escrever uma história, para mim foi acima de tudo escrever sobre o personagem que li quando era miúdo. A caracterização psicológica do Rei do Crime que faço em Partes de um Todo é muito baseada no Rei do Crime das histórias de Frank Miller, pois esse é o único Rei do Crime que conheço.”
Mas a verdade é que, Wilson Fisk, o Rei do Crime, de David Mack, que nesta história divide o protagonismo com o Demolidor, é muito mais do que uma simples cópia do vilão que Miller tornou um dos mais importantes do Universo Marvel. É uma personagem de corpo inteiro, cujo passado é explorado pela primeira vez, de uma forma que vai ser replicada na série televisiva do Demolidor que a Marvel produziu para a Netflix. E muitos dos elementos dessa caracterização, Mack foi buscá-los à sua própria infância. Como o autor refere numa entrevista: “trouxe muito das experiências pessoais da minha infância, para escrever a infância do Rei. Muitas das memórias de infância de Fisk são as minhas.
O hamster e a roda que rodava toda a noite; as discussões entre os pais; o ter de rapar a cabeça devido a uma infestação de piolhos; os passos pesados do pai na escada quando regressava do trabalho, tarde na noite; os desenhos com os retratos de família no frigorífico; o calçar os sapatos do pai, enquanto ele dormia no sofá; aprender os nomes dos presidentes nas notas de dólares (…) a ambição de fazer as coisas acontecer. Todos esses detalhes da psicologia do jovem Wilson Fisk nascem da minha experiência directa, de coisas que vivi em primeira mão.”
Mas, para além de desenvolver a infância de Fisk, o contributo de David Mack para a mitologia do Demolidor passa também pela criação de Maya “Cavalo Louco” Lopez. A mulher por quem Matt Murdock se apaixona e que, enquanto Eco, vai tentar matar o Demolidor.
Face à morte de Karen Page na história anterior, havia necessidade de criar um novo interesse amoroso para Matt Murdock. Com Maya, Mack criou uma amante que é simultaneamente um inimigo, algo que não é propriamente uma novidade para o Homem sem Medo, um herói conhecido pela sua relação complicada com as mulheres, como o atestam as suas ligações tumultuosas com Elektra e até com Typhoid Mary.
Esse é um aspecto da personalidade de Murdock, que foi criado sem mãe, que Mack tem bem presente e que aborda na sua história. Como refere: “A sua mãe esteve ausente da sua vida. Por isso, ele passa a sua vida adulta saltando de mulher para mulher, tentando encontrar a pessoa que o compreende e que o complete. Cada uma dessas mulheres preenche uma lacuna da sua vida. Elektra representa a sua juventude, a Viúva Negra é a sua companheira no combate ao crime, e por aí em diante. Mas nenhuma consegue identificar-se com ele a todos os níveis. Nenhuma consegue compreender completamente o natural dificuldade em abarcar o mundo na sua totalidade, causada pela sua cegueira.”
Sendo surda, Maya, tem também necessariamente uma perspectiva limitada da realidade total e o facto de ter visto o seu pai morrer de um modo violento, faz dela uma alma gémea de Matt e, graças às maquinações de Fisk, a única pessoa capaz de o derrotar.
Em termos gráficos, Quesada e Palmiotti asseguram a arte da história, como já tinha acontecido no arco de Kevin Smith, mas o seu desenho altera-se, adaptando-se como uma luva à forma específica de narrar e planificar de Mack, que está na origem do sucesso da série Kabuki. Por exemplo, a forma como Maya vê o mundo, como a morte do seu pai a marcou, é transmitida através de desenhos de criança, que dialogam na página com o realismo barroco habitual ao traço de Quesada, do mesmo modo que a página se fragmenta, com a divisão tradicional em tiras e quadrados, a darem lugar a uma concepção mais orgânica da página, em que o próprio texto se torna um elemento importante do desenho.
O resultado é visualmente deslumbrante e muito inovador, aproveitando o melhor de ilustradores como Dave McKean, ou Bill Sienkiewicz, e abrindo caminho às experiências posteriores de J. H. Williams III, entre outros. O próprio David Mack é o primeiro a não poupar nos elogios a Quesada, dizendo: “Joe pegou no melhor da minha planificação e do meu estilo narrativo e misturou-o com a sua própria sensibilidade artística, dando origem a uma espécie de novo estilo artístico híbrido. Adorei o resultado! Continua a ser, para mim, o melhor trabalho que Joe Quesada alguma vez fez”
Face ao muito trabalho que tinham como editores, tanto Quesada, como Palmiotti, acabaram por ceder o lugar respectivamente, a David Ross e a Mark Morales, no desenho. Mas essa mudança, que passou praticamente despercebida aos leitores menos atentos, acabou por não afectar o equilíbrio estético do livro, que conserva uma apreciável homogeneidade, face ao rigoroso trabalho de planificação de Mack e ao excelente trabalho de Richard Isanove na cor.
O resultado final é uma das melhores histórias do Demolidor. Uma história que dá a descobrir aos leitores portugueses, o génio de David Mack.